A deficiência não impede a cidadania e a felicidade

23/11/2007

Abordar o tema das pessoas com deficiência numa “Campanha da Fraternidade” é expor uma realidade que muitos querem manter escondida. 


Entendemos que mostrar uma realidade é o primeiro passo para a busca de soluções. Isto é o que faz há mais de 25 anos o cartunista, cadeirante, Ricardo Ferraz, de Cachoeiro de Itapemirim, ES, através da sua arte e da militância pela inclusão das pessoas com deficiência.

 

 

Ricardo Ferraz,
cartunista, cadeirante, de Cachoeiro de Itapemirim, ES.
Endereço eletrônico: [email protected]


Mundo Jovem: De que forma a sociedade trata as pessoas com deficiência?

Ricardo: Historicamente, o preconceito e a desinformação predominaram. As pessoas com deficiência foram sacrificadas porque a sociedade as consideravam um peso. Na Roma Antiga, por exemplo, havia uma lei das 12 tábuas, que dava plenos poderes à família para matar crianças que tinham algum tipo de deficiência. Era, portanto, uma cultura milenar, um preconceito enraizado na nossa sociedade.

 

As pessoas com deficiência sofrem por dois motivos: primeiro pelas suas limitações físicas, se a pessoa não consegue andar, enxergar, ouvir e outras deficiências. E sofrem também se a sociedade não for solidária. Perdem sua auto-estima e vem o desespero.


Mundo Jovem: As próprias pessoas com deficiência estão lutando mais pela sua valorização?

Ricardo: Graças à pressão de pessoas com deficiência, a ONU, em 1981, criou o Ano Internacional que seria para as pessoas com deficiência. Mas houve uma reação dizendo que não queremos um ano para, mas queremos um ano das pessoas com deficiência. O próprio portador de deficiência foi à luta, falando de cidadania em sua batalha pela inclusão.

 

Fui um dos articuladores de uma associação na minha cidade e foi um desafio, porque não conhecia outras pessoas com deficiência. Não via essas pessoas na rua trabalhando. Saí de bairro em bairro, nas periferias e deparei com um quadro dramático da situação. Encontrei jovens até amarrados numa cama, que nunca tinham saído sequer para ver a luz do sol. A ignorância da família, da sociedade, da mídia... Não havia nenhum conceito sobre a inclusão.

 

Falávamos na época em reintegração. Hoje, mudamos o discurso, falamos de uma forma mais ampla de inclusão social.


Mundo Jovem: Por que você começou a abordar o tema da deficiência nos seus cartuns?

Ricardo: Eu saía destes bairros periféricos, deparava-me com este quadro dantesco, surrealista... Como não havia nenhuma informação, eu pensei: por que não abordar esta problemática através do desenho? Foi daí que surgiu esta proposta temática, abordando de forma crítica e humorada a situação das pessoas com deficiência.

 

A exposição, “Visão e revisão, conceito e preconceito”, há mais de 23 anos percorre praticamente todo o país, levando este trabalho aos espaços alternativos para provocar uma reflexão sobre valores da pessoa humana.


Mundo Jovem: O que você mais destaca?

Ricardo: A sociedade criou um conceito do padrão: a altura, o peso... Mas esqueceu que a pessoa humana é biológica e se transforma. Nessa transformação fica ou gorda, velha, sofre deficiência. Então, por ela fugir deste conceito da beleza, da estética, a sociedade criou o pré-conceito. Aqueles que não estão enquadrados naquele conceito padrão são jogados para o lixo social.

 

O Brasil é um país preconceituoso, racista, porque discrima tanto o branco quanto o negro. Quem não está dentro do padrão pré-estabelecido é discriminado.

 

A mídia fala no padrão de beleza estética. Será que uma pessoa com deficiência um dia terá oportunidade de participar de um desfile de modas ou fazer um comercial de algum produto? Então minha intenção é provocar essa reflexão, falando de valores da pessoa humana, porque eu não falo mais da deficiência, eu falo da cidadania.


Mundo Jovem: Você percebe algum avanço na relação da sociedade com as pessoas com deficiência?

Ricardo: É claro que a sociedade amadureceu. De 198l para cá foram criadas várias ONGs, há políticas importantes, mas o processo é lento. Eu não posso falar em nome de uma minoria que alcançou a sua reintegração, eu não falo nem em inclusão. Falo por um Brasil desigual, porque estou aqui representando aqueles que estão excluídos, em casa, passando por privações. Então, essa reflexão é importante.

 

A sociedade precisa criar mecanismos. Hoje nós temos a lei de cotas no mercado de trabalho. As empresas são responsáveis em reservar “x por cento” de vagas, dependendo do tamanho da empresa, para os deficientes. Há algumas pessoas com deficiência trabalhando com êxito; porque eram pessoas que já tinham uma certa escolaridade, já tinham uma profissão. Mas nós nos deparamos com um problema para o preenchimento destas vagas: a qualificação profissional. Então é importante que haja políticas públicas, que os governos municipais, estaduais, governo federal, a sociedade, criem mecanismos para qualificar a pessoa com deficiência para o mercado de trabalho para que ela tenha independência financeira. Porque ela não quer ser um peso para a sociedade.


Mundo Jovem: Então, as pessoas com deficiência precisam de oportunidade?

Ricardo: É bom a sociedade dar essa oportunidade. Nós queremos contribuir de forma positiva e produtiva para a sociedade. O Brasil, hoje, gasta mais no curativo do que no preventivo. Não estamos falando só da questão da pessoa com deficiência, mas de uma sociedade que está segregada: as favelas, as crianças de rua...

 

O nosso sonho é por uma inclusão social. Não só para as pessoas com deficiência, mas todos os segmentos da sociedade. Não queremos ser um movimento egoísta, legislando só em prol da própria causa, lutando somente pela inclusão das pessoas com deficiência. Estamos falando de um país onde há diversidade cultural, social e existe um processo de marginalização nas favelas, cortiços... Vamos sonhar com esta sociedade. Sonhar é possível e graças à organização da sociedade acho que teremos um mundo melhor ou um Brasil mais igualitário.

 

Quem é a pessoa com deficiência? Pode ser você amanhã. Você é um profissional, amanhã sofre um acidente automobilístico ou de trabalho, quer voltar a ter uma vida normal, mas vai se deparar com barreiras de ordem arquitetônica ou de ordem humana: o preconceito. É importante que a sociedade pare, pense, reflita sobre esta questão: não falamos de deficiência, mas falamos de dignidade, ética e de um país realmente justo para esse povo que sofre tanto.


Mundo Jovem: Como a arte, o cartum, pode contribuir para a inclusão da pessoa com deficiência?

Ricardo: O cartum tem um papel fundamental porque tem uma leveza, humor. Apesar que no meu cartum o humor não é do cartunista; já está quase inserido na desinformação.

Como dizia Paulo Francis: “um cartum vale milhares de palavras para um povo a quem se nega as primeiras letras.”

 

As pessoas, às vezes, por não terem uma vivência com essa temática, em princípio têm um impacto, mas depois vem uma reflexão, porque é um trabalho eminentemente educativo. Sempre falo: a minha intenção não é chocar a sociedade, porque ela já está chocada com a violência, os desmandos. A inteção é fazer cócegas na sensibilidade. Então acho que a arte tem um papel fundamental na mudança de comportamento: um novo olhar, uma nova visão. O preconceito do dia-a-dia, são simples coisas, às vezes de um olhar. As pessoas olham para os humildes ou para outros segmentos que estão fora do padrão, olham errado, pensam errado e agem errado. Então, esses são os princípios básicos do preconceito. É importante que as pessoas tenham um olhar positivo, pensem positivo, ajam positivo.


Mundo Jovem: Nós já temos exemplos bonitos de superação e conquistas, não é?

Ricardo: Tivemos conquistas importantes. Há muitas publicações, revistas e livros que vêm mostrando o potencial das pessoas com deficiência.

 

Um exemplo positivo, também, foram as últimas pára-olímpíadas que, mesmo com dificuldades físicas, sem apoio, sem local adequado para treinar, os parolímpicos conseguiram superar a quantidade de medalhas conquistadas pelos atletas ditos normais. Com isso, a imprensa divulgando de um jeito positivo, é um processo de educação permanente, debate permanente. Hoje, conseguimos mudar a imagem negativa quando se mostra artistas portadores de deficiência. Porém, se perguntarmos o nome e o sobrenome do maior artista barroco, por exemplo, poucos sabem, mas quando se fala “o Aleijadinho” todos conhecem. Então, mesmo um artista, na época, não tinha um nome, era apenas um ponto de referência. As pessoas querem ser reconhecidas por um nome e um sobrenome e não por uma deficiência que portam.

 

Outra interessante obra que trata de pessoas portadoras de deficiência é o livro “Visão e revisão, conceito e preconceito”, do cartunista Ricardo Ferraz.


Traz uma coletânea de cartuns do autor, buscando um permanente debate em prol da inclusão social.
O livro pode ser obtido pelo endereço eletrônico: [email protected]


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 As pessoas em primeiro lugar


É importante que as pessoas com deficiência façam parte das nossas comunidades, dos nossos grupos; que possam trazer seus dons para dentro delas. Cada pessoa com deficiência, tem algo para contribuir.

 

Ao longo da história da humanidade, no primeiro momento, as pessoas com deficiência eram deixadas para morrer, sacrificadas. Num segundo momento, foram colocadas em instituições, vivendo segregadas da sociedade. Num terceiro momento passaram pela etapa da integração, isto é, se elas pudessem se integrar neste mundo, elas podiam participar, caso contrário, ficariam de fora.

 

Agora estamos na fase da inclusão, quando as pessoas com deficiência fazem um esforço, mas a sociedade também o faz de acolhê-las, com rampas, com adaptações... Porque não são as pessoas com deficiência que são incapazes, mas o mundo em que nós vivemos é incapacitante.

 

É importante que as comunidades religiosas construam rampas, banheiros acessíveis, para que as pessoas com deficiência possam participar. É importante as comunidades, também, desenvolverem uma programação de visitação, que busquem as pessoas com deficiência que estão isoladas, tragam elas para dentro da comunidade para que possam participar, trazer o seu dom, sua oferta, compartilhar e enriquecer a comunidade.

 

Tive paralisia infantil aos seis meses de vida. Cresci enfrentando as barreiras arquitetônicas, os preconceitos. Ao longo da minha adolescência, sofri muito porque, enquanto todos jogavam vôlei, namoravam, para mim não acontecia assim. Resolvi, então, ser pastora para ajudar as pessoas com deficiência. A deficiência não faz ninguém menos. Ela só é um limite com o qual nós temos que conviver.

 

Eu diria para os jovens, que não têm deficiência, que tentem se aproximar, conviver com quem as têm. Somente a convivência vai quebrar os preconceitos, e fazer perceber que as pessoas com deficiência são, em primeiro lugar, pessoas e, em segundo lugar, elas têm uma deficiência. As pessoas com deficiência têm os mesmos desejos, vontades de ter amigos, fazer programas, mas o preconceito faz com que os sem deficiência se afastem delas. O meu recado é: vão em busca das pessoas que têm deficiência. Elas têm muito a oferecer. Elas são, em primeiro lugar, pessoas.


Iara Müller
pastora, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, RS.

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